Especial O Negócio da Saúde “A judicialização da saúde é um fenômeno multifatorial”
15/04/2025
Enquanto o Sistema Único de Saúde (SUS) enfrenta dificuldades históricas de financiamento e infraestrutura, os planos de saúde privados no Brasil registraram um lucro recorde de R$ 11,1 bilhões em 2024 — um salto de 271% em relação ao ano anterior. O crescimento exponencial da saúde suplementar, impulsionado por reajustes acima da inflação, retenção de pagamentos a hospitais e fornecedores, e práticas cada vez mais agressivas de gestão financeira, levanta um alerta sobre os limites da mercantilização da saúde em um país marcado por desigualdades profundas. Em meio a uma avalanche de ações judiciais contra operadoras e a pressão por maior regulação, o debate se intensifica: a saúde deve obedecer à lógica do mercado ou ao princípio constitucional de direito universal?
Em um cenário de recuperação econômica lenta e precarização dos serviços públicos, os planos de saúde privados no Brasil alcançaram um lucro líquido de R$ 11,1 bilhões em 2024 — um salto de 271% em relação ao ano anterior. O dado, divulgado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), escancara uma disparidade crescente entre os ganhos do setor e a realidade enfrentada pelos consumidores que, além de conviverem com reajustes acima da inflação, enfrentam barreiras no acesso a serviços de qualidade.
A cifra representa mais do que a soma dos lucros dos três anos anteriores, e corresponde a 3,16% da receita total do setor, estimada em R$ 350 bilhões. Para cada R$ 100 pagos por clientes, as operadoras retiveram R$ 3,16 como lucro líquido. Embora o índice possa parecer modesto à primeira vista, trata-se de um desempenho extraordinário se comparado à rentabilidade histórica do setor e, sobretudo, ao contexto social em que ele se insere.
Segundo o Painel Econômico-Financeiro da Saúde Suplementar, a taxa de sinistralidade — ou seja, a proporção da receita usada para custear os serviços assistenciais — foi de 82,2% no último trimestre de 2024, a menor para esse período desde 2018. O dado sugere que as operadoras estão utilizando uma fatia menor da receita para atender os clientes, o que ajuda a explicar o crescimento expressivo nos lucros.
A própria ANS reconhece que o resultado financeiro foi impulsionado, principalmente, pelas grandes operadoras médico-hospitalares, responsáveis por R$ 9,2 bilhões do lucro total. Essas empresas não apenas reorganizaram sua estrutura financeira, como também reajustaram os valores das mensalidades em patamares superiores à inflação do setor — prática que, embora legal, levanta sérias questões éticas e sociais.
Em 2024, os reajustes anuais autorizados pela ANS chegaram a superar os 9%, em um período em que o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) fechou abaixo dos 5%. A disparidade entre o aumento das mensalidades e a inflação oficial reflete uma tendência de financeirização da saúde — termo utilizado por estudiosos como Giovanni Alves (Unesp), que denuncia o processo de subordinação dos serviços de saúde à lógica do capital financeiro.
Essa lógica, como explica o economista francês Thomas Piketty, contribui para o aprofundamento das desigualdades em setores essenciais da vida humana, incluindo saúde, educação e moradia. “Quando o retorno do capital supera o crescimento da economia, a desigualdade tende a aumentar”, escreve Piketty em O Capital no Século XXI (2013).
No caso brasileiro, esse fenômeno se agrava diante de um sistema público de saúde cronicamente subfinanciado. Enquanto o SUS atende cerca de 75% da população, com recursos que correspondem a pouco mais de 4% do PIB, o setor privado — que atende uma minoria mais rica — tem ampliado seu faturamento ano após ano. O contraste entre o lucro recorde dos planos e a realidade das filas, da escassez de médicos e da falta de insumos no setor público expõe uma contradição estrutural no modelo de saúde vigente no país.
Do ponto de vista da sociologia, autores como Jessé Souza e Loïc Wacquant ajudariam a interpretar esse fenômeno como um reflexo da captura do Estado por interesses de classe, que privilegia os lucros privados em detrimento dos direitos sociais. “A desigualdade não é apenas uma consequência econômica, mas uma construção política e moral que define quem deve ser salvo e quem pode ser descartado”, escreveu Souza em A Elite do Atraso (2017).
Diante desse cenário, cresce a pressão por uma regulação mais firme da ANS, cujo papel institucional, previsto na Constituição, é justamente equilibrar os interesses econômicos das operadoras com os direitos dos consumidores e a promoção do acesso universal à saúde. No entanto, como mostram estudos do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), a regulação do setor privado no Brasil ainda é marcada por assimetrias de informação, fragilidade na fiscalização e forte influência política dos grandes grupos econômicos.
A saúde, direito constitucional garantido pelo artigo 196 da Constituição de 1988, não pode ser reduzida a uma equação de balanço patrimonial. O desafio que se impõe, portanto, é repensar o lugar da saúde na sociedade brasileira — não como mercadoria, mas como um bem público essencial à dignidade humana.
Lucro dos Planos, Prejuízo da Saúde
Por trás dos lucros históricos das operadoras de saúde em 2024, esconde-se uma crise silenciosa que ameaça a estrutura da saúde suplementar no Brasil. Enquanto o setor celebra um salto de 500% nos lucros, hospitais privados de ponta amargam a retenção de R$ 5,8 bilhões — valor que compromete a expansão de leitos, investimentos em equipamentos e a abertura de UTIs em um país ainda marcado por desigualdades no acesso à saúde.
O levantamento inédito da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), realizado com 85 instituições de referência como o Albert Einstein e o Sírio-Libanês, expõe uma prática que se tornou corriqueira no setor: a retenção de pagamentos por parte das operadoras de saúde, por meio das chamadas glosas. Essas suspensões, justificadas pelas operadoras como medidas de verificação, atingiram 15,89% do total devido aos hospitais — quase o triplo da média histórica de 3% a 5% antes de 2022.
Essa tendência não apenas desequilibra as relações contratuais no setor, como também gera um efeito cascata em toda a cadeia de saúde. Segundo a pesquisa, 41,7% dos hospitais realizaram menos investimentos do que o planejado em 2024, em plena vigência de juros elevados que inibem financiamentos. “É uma situação de bastante aperto”, afirma Antônio Britto, diretor-executivo da Anahp. “A glosa passou de ferramenta de auditoria a instrumento de gestão financeira pelas operadoras”.
Uma glosa transformada em sistema
Historicamente, o sistema de saúde suplementar brasileiro cresceu em meio à precarização progressiva do SUS, e se tornou a principal alternativa da classe média urbana. Com mais de 50 milhões de beneficiários, o setor de planos de saúde concentra uma parte significativa dos recursos da saúde privada. Essa força econômica, no entanto, tem gerado assimetrias graves nas relações com os hospitais e fornecedores.
Segundo a Anahp, 98% dos valores inicialmente glosados foram posteriormente liberados após revisão — o que indica uma estratégia recorrente de retenção indevida. Ainda mais preocupante é a prática crescente de exigência de descontos para que os pagamentos sejam efetivados. “Eu reconheço que te devo 800. Mas, para te pagar, preciso que você me dê um desconto. Aí eu te pago 600”, exemplifica Britto.
Esse desequilíbrio afeta diretamente o ecossistema hospitalar, onde a previsibilidade financeira é crucial para garantir a manutenção de serviços de alta complexidade. Equipamentos sofisticados, UTIs e pessoal especializado dependem de investimentos constantes. Com pagamentos postergados ou reduzidos, o risco de colapso sistêmico torna-se iminente.
Cadeia em colapso: fornecedores também sangram
Os impactos da retenção de recursos vão além dos hospitais. A Associação Brasileira de Importadores e Distribuidores de Produtos para Saúde (Abraidi) estima que R$ 3,8 bilhões deixaram de ser pagos aos fornecedores em 2024, dos quais R$ 2,3 bilhões se referem a produtos já utilizados e previamente autorizados pelas operadoras. O presidente do conselho da Abraidi, Sérgio Rocha, alerta para uma relação comercial cada vez mais insustentável: “São práticas que agridem as boas práticas de negociação e o fluxo de caixa das empresas”, afirma em nota.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, Rocha denuncia um “desequilíbrio sistêmico”, onde fornecedores são forçados a aceitar condições unilaterais sob pena de exclusão do mercado. Essa lógica excludente contraria os princípios de uma economia de mercado saudável e revela um comportamento predatório travestido de gestão financeira.
A resposta das operadoras: o discurso do controle
Do outro lado da equação, as entidades que representam as operadoras defendem as glosas como medidas legítimas de contenção de custos. A Abramge e a Fenasaúde, principais vozes do setor, citam dados da ANS que indicam queda no tempo médio de pagamento — supostamente de 60 para 32,8 dias em 2024 — e um índice oficial de glosas de 7,4%.
Contudo, especialistas alertam para a discrepância entre os dados oficiais e a realidade das grandes instituições hospitalares. “As estatísticas da ANS representam a média de um setor altamente heterogêneo. A realidade dos grandes hospitais, que concentram os procedimentos mais caros e complexos, é muito mais crítica”, avalia o sanitarista e ex-ministro da Saúde, Arthur Chioro.
Além disso, segundo o professor da FGV Saúde, Gonzalo Vecina Neto, “não há justificativa econômica plausível para operadoras com lucros tão altos manterem práticas sistemáticas de retenção de recursos. O que está em jogo é o acesso da população a cuidados de qualidade”.
Uma crise ética e estrutural
Sob o prisma da filosofia política, a crise atual revela um conflito entre a racionalidade instrumental do mercado e os valores do bem comum. Como alerta o filósofo Michael Sandel, em O que o dinheiro não compra, quando os valores de mercado invadem todas as esferas da vida, corremos o risco de corromper os bens que deveriam proteger.
No caso da saúde, os mecanismos de mercado, quando não regulados, ameaçam os princípios fundamentais do direito ao cuidado, à dignidade e à vida. O lucro das operadoras, ainda que legítimo, não pode se sobrepor ao funcionamento sustentável da cadeia hospitalar, tampouco às necessidades da população.
O papel do Estado e a urgência de transparência
É urgente que o Estado brasileiro, por meio da ANS e do Congresso Nacional, reavalie o modelo de regulação da saúde suplementar. A transparência na relação entre operadoras, hospitais e fornecedores deve ser ampliada, com critérios claros sobre glosas e prazos de pagamento. Modelos internacionais, como o do Reino Unido (NHS) ou da Alemanha, oferecem parâmetros onde a fiscalização é rigorosa e o interesse público prevalece.
A crise também demanda que a sociedade civil e os conselhos de saúde exijam accountability de um setor que movimenta mais de R$ 250 bilhões por ano e impacta diretamente a vida de milhões.
Num país onde o acesso à saúde ainda é marcado por desigualdades históricas, a financeirização da saúde suplementar não pode ser encarada como um jogo de soma zero. O lucro das operadoras, quando baseado em práticas sistemáticas de retenção, revela não eficiência, mas exploração.
A sustentabilidade do sistema de saúde passa necessariamente por relações equilibradas entre todos os seus atores. Sem isso, a planilha de lucros continuará a crescer à custa da saúde real da população.
Saúde privada em expansão
O setor de saúde suplementar brasileiro encerrou 2024 com números recordes de beneficiários: 52,2 milhões em planos médico-hospitalares e 34,4 milhões em planos exclusivamente odontológicos, segundo levantamento da ANS. O avanço, que supera o crescimento populacional, revela mais do que um movimento de mercado: sinaliza mudanças socioculturais, desconfianças históricas no sistema público e uma preocupação crescente da população com o acesso à saúde em tempos de incerteza.
De dezembro de 2023 a dezembro de 2024, 862.771 pessoas passaram a contar com planos médico-hospitalares privados, enquanto os odontológicos somaram mais de 2 milhões de novos usuários. O salto representa mais do que um simples crescimento setorial: é reflexo direto da intensificação das desigualdades no sistema de saúde brasileiro, da percepção de insegurança diante da estrutura pública e das consequências prolongadas da pandemia de covid-19. “Esse aumento da procura por planos de saúde pode indicar que as pessoas ficaram ainda mais preocupadas em garantir o acesso ao sistema de saúde num momento de grande necessidade”, avalia a ANS.
A saúde como mercadoria e o Estado em xeque
O avanço da saúde suplementar precisa ser lido à luz do contexto histórico e político do Brasil. Desde a Constituição de 1988, que consagrou a saúde como direito de todos e dever do Estado, o SUS representa uma das maiores políticas públicas de inclusão social do país. No entanto, o subfinanciamento crônico e os ataques à sua sustentabilidade, agravados nos últimos anos por políticas de austeridade e cortes orçamentários, têm minado sua capacidade de atendimento universal e integral.
Segundo dados do IBGE, enquanto a população brasileira cresceu 6,5% entre 2010 e 2022, o número de beneficiários de planos de saúde aumentou 12% no mesmo período. O descompasso aponta para uma preferência crescente pela saúde privada, sobretudo entre as faixas etárias de 45 a 54 anos, que lideram o crescimento em novos contratos. Em outras palavras, setores economicamente ativos e preocupados com o envelhecimento buscam segurança longe do SUS — um fenômeno que, paradoxalmente, reforça as desigualdades estruturais no país.
Para o filósofo e sociólogo francês Michel Foucault, a medicalização da vida está intrinsecamente ligada à lógica do biopoder — isto é, à forma como o Estado e o mercado controlam os corpos por meio de práticas institucionais. No Brasil, isso se traduz na expansão da saúde privada como alternativa à precarização das garantias públicas, onde o acesso à saúde se torna privilégio daqueles que podem pagar.
Economia, empregabilidade e a lógica do consumo
O crescimento dos planos de saúde também acompanha, historicamente, as flutuações econômicas e os níveis de emprego formal. Como a maioria dos contratos está atrelada à empregabilidade com carteira assinada, o avanço em 2024 sugere uma relativa recuperação do mercado de trabalho formalizado, após anos de retração e informalidade.
Ainda assim, o cenário permanece incerto. O diretor de Desenvolvimento Setorial da ANS, Maurício Nunes, pondera que a continuidade do crescimento dependerá de “aspectos como o cenário econômico-financeiro, a empregabilidade e a variação dos custos em saúde”. Ou seja, trata-se de um crescimento dependente de múltiplas variáveis estruturais — entre elas, o próprio modelo econômico em vigor.
Vale notar também o crescimento expressivo dos planos exclusivamente odontológicos, com 2.065.209 novos usuários apenas em 2024. A maior conscientização sobre saúde bucal pode estar relacionada a campanhas educativas, maior oferta de serviços no setor e à busca por bem-estar estético e preventivo. Isso aponta para um novo padrão de consumo de saúde no país, cada vez mais voltado à personalização e ao cuidado contínuo, numa lógica que mescla saúde e mercado.
Território, desigualdade e o Brasil fragmentado
A distribuição regional dos beneficiários reforça as disparidades históricas do país: São Paulo, Minas Gerais e Amazonas lideram o crescimento dos planos médico-hospitalares, enquanto Paraná substitui o Amazonas entre os que mais cresceram nos planos odontológicos. Tais diferenças espelham o acesso desigual aos serviços públicos e privados de saúde, onde os grandes centros urbanos concentram tanto os gargalos do SUS quanto as oportunidades da rede privada.
Em termos sociológicos, é possível afirmar que a saúde suplementar reflete a própria estrutura de classes do Brasil. “A saúde é um espelho das desigualdades sociais”, lembra a pesquisadora Ligia Bahia, professora da UFRJ e especialista em saúde pública. A expansão dos planos não necessariamente representa melhoria do sistema como um todo, mas sim a tentativa individualizada de escapar de um colapso coletivo.
Uma encruzilhada para o futuro
Se, por um lado, os dados apontam para uma sociedade que valoriza mais o acesso à saúde e está disposta a investir nisso, por outro lado, revelam o esvaziamento paulatino do compromisso público com a saúde universal. O crescimento da saúde suplementar, embora legítimo como escolha individual e empresarial, não pode servir de álibi para a omissão do Estado na garantia dos direitos sociais.
A saúde, como defende a Constituição, deve ser um bem público — e não uma mercadoria. A expansão dos planos privados pode ser sintoma de dinamismo econômico e também de medo, insegurança e desigualdade. O desafio é equilibrar esses vetores com políticas públicas robustas, investimento contínuo no SUS e vigilância democrática contra qualquer forma de desmonte dos direitos sociais.
Número de ações contra planos de saúde dobra em 4 anos no Brasil
O aumento exponencial de ações judiciais contra planos de saúde no Brasil expõe não apenas a insatisfação crescente dos consumidores com o setor, mas também uma crise mais profunda na saúde suplementar. Em 2024, o número de processos chegou a 298.755, mais do que o dobro dos 141.713 registrados em 2020, segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A tendência de alta se manteve constante ano a ano, evidenciando uma disputa crescente entre beneficiários e operadoras, que vai além de meros conflitos contratuais: trata-se de um sintoma de um sistema tensionado entre a lógica de mercado e o direito à saúde.
De acordo com o CNJ, os principais motivos das ações movidas em 2023 foram negativas de cobertura para tratamentos médico-hospitalares (154.857 casos), recusa no fornecimento de medicamentos (47.810) e reajustes contratuais (47.720) — especialmente por faixa etária. O padrão é repetido em milhares de decisões judiciais país afora: usuários buscam o Judiciário para garantir o que acreditam estar contratualmente previsto, enquanto operadoras se defendem alegando necessidade de equilíbrio econômico-financeiro.
“A judicialização da saúde é um fenômeno multifatorial”, afirma o jurista Henderson Furst, especialista em direito médico e professor da Faculdade Mackenzie. Segundo ele, há mais informação disponível sobre direitos, maior acesso ao Judiciário e, ao mesmo tempo, um descompasso entre a interpretação dos contratos por parte das operadoras e a expectativa legítima dos usuários. A advogada Renata Abalém, diretora jurídica do Instituto de Defesa do Consumidor e do Contribuinte, corrobora: “As ações judiciais são intentadas porque o consumidor paga a sua parte e percebe que o plano não cumpre a sua”. Para ela, o Judiciário se tornou uma via necessária diante do descumprimento recorrente por parte das operadoras.
Essa insatisfação é amplificada por um fenômeno mais recente e alarmante: as rescisões unilaterais de contrato sem justificativa clara. “O mercado de saúde suplementar no Brasil enfrenta hoje uma crise”, alerta a advogada Bruna de Godoy. “Do lado das operadoras há alegações de dificuldades financeiras e desequilíbrio atuarial; do lado dos pacientes, vemos cláusulas abusivas, cortes na rede credenciada e cancelamentos arbitrários.”
A judicialização, no entanto, não é apenas um embate individual entre consumidor e prestadora. Ela é também o reflexo de um modelo de saúde suplementar cada vez mais tensionado por sua lógica de mercado. No Brasil, mais de 52 milhões de pessoas possuem planos privados de assistência médica, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Isso representa aproximadamente 24% da população brasileira, um contingente que recorre ao setor privado muitas vezes por descrença ou esgotamento do SUS, mas que, paradoxalmente, se vê desamparado mesmo ao pagar.
Saúde como mercadoria ou direito?
A tensão entre o que é contratado e o que é efetivamente entregue levanta uma questão crucial: até que ponto a saúde pode ser tratada como um serviço submetido às leis de mercado? Para o filósofo Michael Sandel, “há coisas que o dinheiro não deveria comprar” (em O que o dinheiro não compra, 2012), e a saúde é uma delas. A lógica de lucro das operadoras colide frontalmente com o princípio constitucional da saúde como um direito social, previsto no artigo 6º da Constituição de 1988.
Esse conflito não é novo, mas se aprofunda à medida que o setor privado assume mais espaço na prestação de serviços essenciais. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), sistemas de saúde que combinam fortemente modelos privados e públicos tendem a sofrer com desigualdades e ineficiências, especialmente quando a regulação é frágil — cenário que se confirma no Brasil.
O papel do Estado e o desafio da regulação
A judicialização também coloca em xeque a atuação do Estado como regulador. A ANS, responsável por normatizar e fiscalizar o setor, enfrenta críticas constantes por sua lentidão e por sua postura, muitas vezes, considerada leniente diante das grandes operadoras. A recorrente necessidade de intervenção judicial para garantir o cumprimento de coberturas mínimas obrigatórias — como as previstas no Rol de Procedimentos da ANS — é um sinal claro de falhas na regulação.
Além disso, a ausência de mecanismos eficazes para conter reajustes abusivos, rescisões arbitrárias e exclusões unilaterais fragiliza ainda mais o elo mais vulnerável da cadeia: o paciente. Como aponta o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, “quando os tribunais se tornam o único caminho possível, a democracia corre o risco de se transformar em uma democracia de papel” — acessível apenas a quem pode litigar, o que intensifica desigualdades.
O cenário atual da saúde suplementar no Brasil é o retrato de um setor que precisa urgentemente repensar seus fundamentos. A judicialização não pode ser a regra, mas o último recurso. Para isso, é necessário um compromisso público com a transparência contratual, o fortalecimento da regulação estatal e, sobretudo, o respeito ao usuário como sujeito de direitos.
A crise da saúde suplementar é mais do que um impasse jurídico: é uma crise ética e política. Ela exige uma ação coordenada entre os Poderes da República, a sociedade civil e os próprios atores do setor. O desafio é reequilibrar o sistema sem abrir mão do princípio fundamental de que a saúde, mais que um serviço, é um direito humano inalienável.
STF em xeque: a saúde como direito ou privilégio?
Em meio a um dos embates mais sensíveis entre direitos sociais e interesses do mercado, o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou na quinta-feira (10) o julgamento da constitucionalidade da Lei 14.454/2022. A norma obriga os planos de saúde a custearem tratamentos e exames não incluídos na lista da ANS, reabrindo o debate sobre a função social da saúde suplementar no Brasil. No centro da discussão, está o conflito entre o direito à saúde, garantido constitucionalmente, e os limites da livre iniciativa no setor privado.
O julgamento surge como desdobramento direto da decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que em junho de 2022 declarou o rol da ANS como taxativo, restringindo o acesso a tratamentos fora da lista oficial. A repercussão negativa foi intensa, sobretudo entre pacientes com doenças raras ou em condições que demandam terapias inovadoras. Como resposta legislativa, o Congresso aprovou e o Executivo sancionou a nova lei, transformando o rol da ANS em exemplificativo — ou seja, uma referência mínima, e não um limite absoluto de cobertura.
A ação foi movida pela União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde (Unidas), que contesta trechos da nova legislação. Segundo a entidade, a imposição legal compromete o equilíbrio financeiro dos planos e ameaça a sustentabilidade do setor. “A incerteza aumenta o risco e, ao aumentar o risco, tem que aportar mais recursos, o que acaba repercutindo naqueles que oferecem o serviço. A pressão sobre o sistema é muito real”, afirmou o advogado Luiz Inácio Adams durante a sustentação oral.
Do outro lado, representantes de organizações da sociedade civil reagiram com contundência. Para a advogada Camila Cavalcanti Junqueira, do Comitê Brasileiro de Organizações das Pessoas com Deficiência, as operadoras se valem de uma retórica alarmista para manter práticas excludentes. “É lamentável que as operadoras de saúde movimentem a maior Corte deste país, procurando replicar o seu modus operandi, que é criar o terror, o medo”, declarou.
O presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, reconheceu a complexidade da questão: “De um lado, o direito à saúde de parcela importante da população, de outro, os princípios que regem a livre iniciativa. Portanto, uma questão delicada, que merece a atenção do tribunal.”
A importância do julgamento transcende o caso específico e toca a espinha dorsal do sistema de saúde brasileiro. A Constituição de 1988, em seu artigo 196, estabelece que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. Mas a própria Carta admite a existência da saúde suplementar como setor privado, desde que complementar ao SUS. Isso levanta uma questão filosófica e política fundamental: a saúde, quando mercantilizada, deixa de ser um direito universal?
O filósofo italiano Norberto Bobbio advertia que a luta pelos direitos sociais “não termina com sua proclamação, mas com sua efetiva realização”. No caso dos planos de saúde, a luta é pelo reconhecimento de que o direito à vida não pode ser condicionado por uma cláusula contratual.
Segundo dados da ANS, cerca de 50 milhões de brasileiros possuem planos de saúde, o que representa aproximadamente 24% da população. O restante depende exclusivamente do SUS, cuja sobrecarga estrutural é bem documentada. Mas mesmo entre os que contratam planos privados, há crescente frustração com negativas de cobertura. Um levantamento do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) mostrou que os planos de saúde lideram o ranking de reclamações em órgãos de defesa do consumidor nos últimos anos, especialmente por recusas a tratamentos.
A Lei 14.454/2022 estabeleceu critérios objetivos para a cobertura de procedimentos não incluídos no rol da ANS, como comprovação científica de eficácia, recomendação pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), ou autorização expressa do médico responsável. Ou seja, a norma não abre caminho para o uso indiscriminado de terapias sem comprovação, como alegam os planos, mas visa garantir acesso a tratamentos modernos e necessários, já reconhecidos pela ciência e por protocolos internacionais.
A decisão do STF, embora ainda sem data marcada para votação, terá repercussões duradouras. Não apenas para os milhões de usuários que dependem dos planos para acesso a cuidados especializados, mas também como um termômetro de até onde a mais alta corte do país está disposta a ir na defesa dos direitos sociais diante de pressões econômicas.
No fundo, o julgamento põe em xeque o modelo de saúde que o Brasil pretende adotar: um modelo de proteção integral à dignidade humana ou um modelo regido pelas regras impessoais do mercado? Como escreveu o sociólogo francês Pierre Bourdieu, “os direitos sociais não são garantias naturais, mas conquistas que exigem vigilância constante”. E o STF, mais do que um árbitro jurídico, está diante da responsabilidade de escolher entre a justiça formal dos contratos e a justiça material da vida.
E então?
A expansão dos planos de saúde no Brasil reflete, mais do que um avanço setorial, a erosão progressiva da confiança na saúde pública e a consolidação de um modelo excludente, no qual o acesso à vida digna depende do poder de compra. Os lucros bilionários das operadoras, construídos muitas vezes sobre práticas abusivas e desequilíbrios contratuais, contrastam com o esgotamento do SUS e com a judicialização crescente do setor. Para que a saúde deixe de ser um privilégio de poucos e retorne ao seu lugar de direito fundamental, é urgente fortalecer a regulação estatal, garantir a transparência nas relações entre operadoras, prestadores e usuários, e, sobretudo, reafirmar o compromisso com o bem público. Afinal, um sistema de saúde sustentável só pode existir quando a dignidade humana é colocada acima do lucro.
Publicado em Semana On