Receita estuda nova regra para movimentações em fintechs

10/04/2025

A discussão sobre a obrigatoriedade de que fintechs informem à Receita Federal do Brasil (RFB) as movimentações financeiras de seus clientes volta ao centro do debate entre o governo e o setor financeiro digital. A Receita está reexaminando a possibilidade de retomar a proposta, inicialmente ventilada em janeiro deste ano, mas que foi temporariamente suspensa após forte repercussão negativa.

O objetivo da medida é harmonizar o fluxo de informações com o padrão já exigido de instituições financeiras tradicionais, ampliando o controle sobre movimentações que possam indicar sonegação fiscal, lavagem de dinheiro ou outras irregularidades. A mudança, porém, tem sido vista com cautela pelo mercado e por especialistas, que apontam tanto avanços quanto riscos em sua aplicação.

“A ideia da Receita é evitar inconsistências de informações que possam prejudicar os próprios contribuintes e reforçar os mecanismos de fiscalização de forma integrada. Muitas fintechs já fornecem dados, mas o novo modelo pode aumentar o volume e a frequência das informações”, explica André Luiz Andrade dos Santos, sócio do escritório Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados.

Fintechs são empresas que combinam tecnologia com serviços financeiros, atuando como bancos digitais, carteiras eletrônicas, plataformas de investimentos, entre outros. Algumas dessas startups se transformaram em gigantes do setor, como é o caso de Nubank, Inter, PicPay, PagBank e Mercado Pago.

Essas instituições, como qualquer outra entidade financeira, são obrigadas a prestar informações à Receita, conforme regras da Instrução Normativa RFB nº 1.571/2015. Por esse sistema, informações sobre operações de clientes com movimentações mensais superiores a R$ 2 mil para pessoas físicas e R$ 6 mil para pessoas jurídicas devem ser informadas ao Fisco.

No entanto, a proposta em discussão visa uniformizar a aplicação dessas exigências, tornando obrigatória a transmissão mensal mesmo para fintechs que hoje estão dispensadas de alguns envios por não se enquadrarem como instituições financeiras no modelo tradicional.

Por que a proposta gera resistência?

Em janeiro, quando a ideia ganhou visibilidade, algumas das principais fintechs se mostraram favoráveis à padronização das regras, argumentando que ela aumentaria a segurança jurídica e traria maior previsibilidade ao ambiente regulatório. No entanto, a divulgação da medida foi acompanhada de uma forte onda de desinformação nas redes sociais, que chegou a associar a proposta a uma tentativa do governo de taxar movimentações bancárias de pessoas físicas. A narrativa causou preocupação nos consumidores e levou o governo a recuar temporariamente.

“Houve um equívoco de comunicação. Não se trata de uma nova tributação, mas de uma obrigação acessória de informação, já prevista para instituições financeiras. A proposta do Fisco apenas iguala o tratamento entre fintechs e bancos tradicionais”, destaca Andrade dos Santos.

Privacidade, risco de vazamento e o direito à intimidade

Para o advogado Carlos Eduardo Delmondi, sócio do Oliveira e Olivi Advogados, o principal problema da medida é de natureza constitucional: “O cidadão não pode ser tratado como suspeito só porque usa o sistema financeiro. Obrigar as fintechs a enviar, todo mês, informações detalhadas dos seus clientes sem nenhuma razão concreta é transformar a exceção em regra”, afirma.

Delmondi lembra que o STF, ao julgar as ADIs 2390 e 2386, reconheceu que a Receita pode acessar dados bancários, mas sempre com finalidade fiscal específica, controle interno e rastreabilidade. “Isso é muito diferente de um sistema que exige o envio automático e massivo de informações sensíveis, mês após mês, sem nenhuma individualização”, ressalta.

Ele também aponta para riscos concretos à segurança digital: “A remessa frequente de dados financeiros, sem ordem judicial individualizada, amplia o risco de vazamentos, acessos indevidos e uso desproporcional dessas informações”, diz.

Competitividade e impacto sobre as fintechs

Na avaliação de João Nascimento, sócio da área financeira e de fintechs do CSMV Advogados, a medida pode prejudicar o crescimento das empresas menores: “Esse tipo de reporting vai resultar em aumento dos custos operacionais. As fintechs terão que investir em infraestrutura tecnológica e de pessoal para garantir o cumprimento adequado da obrigação, o que pode prejudicar o investimento em áreas essenciais como marketing e inovação”, ressalta.

Para Carlos Eduardo Delmondi essa exigência de reporte mensal, na prática, joga contra quem quer inovar. “Fintechs são, por natureza, empresas ágeis. Quando o Estado impõe obrigações pesadas e frequentes, cria um ambiente sufocante. Quem se beneficia são os grandes bancos que já têm estrutura montada. E o resultado é a concentração de mercado”, avalia.

Combate à lavagem de dinheiro e à sonegação: uma solução efetiva?

José Rubens Constant, advogado do JLegal Team, acredita que a proposta tem fundamentos legítimos: “O monitoramento das movimentações financeiras, incluindo aquelas realizadas por meio de fintechs, fortalece as ferramentas da Receita Federal para identificar e prevenir práticas ilícitas, como a lavagem de dinheiro e a sonegação fiscal.” Ele pondera, no entanto, que a proteção da privacidade deve ser preservada: “Em se tratando de medida que informe apenas o volume mensal, sem especificar quem realizou tais movimentações, o sigilo bancário fica protegido.”

João Nascimento discorda quanto à eficácia da proposta: “Já existem obrigações previstas nas normas do BCB voltadas à prevenção à lavagem de dinheiro. A fiscalização contra a sonegação fiscal deveria adotar ferramentas específicas, não misturar os temas.”

Benefícios esperados para o Fisco

Se implementada, a medida reforçaria o poder da Receita Federal no cruzamento de dados fiscais e na identificação de movimentações incompatíveis com a declaração de rendimentos dos contribuintes. Isso reduziria o risco de malha fina indevida e aprimoraria os mecanismos de combate à lavagem de dinheiro e evasão fiscal.

Além disso, o uso de dados padronizados pode aumentar a eficiência na gestão de riscos, facilitando a ação do poder público em casos de movimentações atípicas ou suspeitas.

Desafios e riscos para o setor

Do ponto de vista das fintechs, a principal preocupação está no aumento de custos operacionais e de compliance para cumprir as exigências. Empresas menores, que ainda não possuem sistemas fortes de repasse de dados, podem enfrentar dificuldades para se adaptar à nova realidade.

Outra questão sensível é o temor de interpretações equivocadas por parte dos consumidores, que, diante da memória recente da tentativa de recriação da CPMF, passam a associar qualquer movimentação com possível tributação.

“A clareza na comunicação será fundamental. É preciso deixar claro que não se trata de uma cobrança, mas de uma medida que visa organizar informações já existentes”, reforça Andrade dos Santos.

O futuro da regulação financeira no Brasil

A retomada da discussão acontece em um contexto mais amplo de modernização do sistema financeiro brasileiro, em que o open finance, o real digital e a consolidação das moedas eletrônicas estão remodelando o relacionamento entre consumidores e instituições financeiras.

Especialistas apontam que a regulação precisa evoluir para equilibrar inovação, segurança jurídica e proteção de dados. Nesse sentido, a tendência é que as fintechs passem a ser tratadas de forma cada vez mais similar às instituições bancárias tradicionais em termos de obrigações regulatórias, ainda que com salvaguardas para não comprometer a competitividade.

A Receita Federal ainda não formalizou um novo texto sobre o tema, mas fontes do setor indicam que uma nova versão da proposta pode ser apresentada até o segundo semestre de 2025, com foco em maior uniformização do fluxo de dados e garantia de tratamento isonômico entre todos os participantes do sistema financeiro.

A discussão sobre a obrigatoriedade de envio mensal de informações financeiras pelas fintechs revela um conflito entre o avanço da regulação e a preservação da liberdade econômica no setor financeiro digital. Ao mesmo tempo em que o Fisco busca aperfeiçoar seus mecanismos de controle, é essencial garantir que a implementação de novas exigências não comprometa a competição e a inclusão financeira promovida por essas empresas.

O debate, portanto, está longe de ter um fim. “A discussão não é sobre tributar ou não tributar, mas sobre como garantir um ambiente mais transparente e justo, sem sufocar a inovação”, destaca Andrade dos Santos.

Publicado em LexLatin

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